Blog

Lições sobre a adoção de reconhecimento facial pelo poder público

Livia Pazianotto Torres e Tainá Ometto*

Reconhecimento facial, moratória e banimento

Livia Pazianotto Torres e Tainá Ometto*

Reconhecimento facial, moratória e banimento

Diferentes tipos de reconhecimento facial e escopos para sua utilização surgem a cada dia . No entanto, crescem também as denúncias de usos abusivos desta tecnologia, que revelam um forte potencial discriminatório e vigilante, ameaçando os direitos humanos. Como exemplo, podemos citar o caso da Via4, concessionária do metrô de São Paulo, que identificava a reação de passageiros a anúncios colocados em painéis nas plataformas do metrô sem prévia informação ou consentimento. Outro caso emblemático é o da trabalhadora que foi presa por um erro do sistema de reconhecimento facial no Rio de Janeiro, confundida com uma suspeita de praticar homicídio. 

Assim, ganha força a pressão pela moratória e banimento das tecnologias de reconhecimento facial. Através deste movimento, a sociedade civil – impulsionada pelo movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos – pede pela suspensão temporária do uso do reconhecimento facial antes de haver estudos aprofundados e marcos regulatórios assegurando a proteção aos direitos humanos possivelmente ameaçados pela tecnologia. 

Movimentos institucionais já se concretizaram neste sentido, como, por exemplo, a recomendação do Relator Especial da ONU para Liberdade de Opinião e Expressão de suspensão da venda e utilização de tecnologias de reconhecimento facial; ou o estado de Nova Iorque que proibiu o uso da tecnologia em escolas por dois anos; as cidades de São Francisco e Portland, que também proibiram a utilização por parte das polícias; e IBM, Amazon e Microsoft que concordaram em deixar de vender para polícias este tipo de tecnologia, antes da existência de leis nacionais sobre o tema.

O PL do reconhecimento facial do Metrô e da CPTM

Na contramão destes debates, aprovou-se em fevereiro de 2021 na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo o Projeto de Lei nº 865 de 2019, autorizando o uso da tecnologia de reconhecimento facial no metrô e na CPTM. Cabe pontuar que o país ainda discute uma legislação específica para regulamentar o uso de dados pessoais na segurança pública, com o anteprojeto de lei apelidado “LGPD penal”. Assim, 26 entidades da sociedade civil apresentaram uma carta aberta ao Governador João Doria, bem como uma nota técnica, solicitando que o projeto em questão fosse vetado. 

De forma resumida, pode-se apontar que a carta e a nota técnica levantam que o PL carece de: (i) diálogo com a população, devido ao trâmite acelerado do projeto e ausência de processos de consulta pública; (ii) formas de lidar com as falhas do reconhecimento facial em pessoas não brancas e transsexuais, podendo levar ao uso ineficiente de recursos públicos, uma vez que a tecnologia pode ser incerta, imprecisa e propícia a abusos; (iii) citações a legislações envolvidas – como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD; Lei nº 13.709/2018), o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990)  e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990)  – inclusive deixando de abordar os direitos dos titulares de dados, a necessidade de produção do relatório de impacto e de se criar salvaguardas à população; (iv) restrição do uso da tecnologia para finalidades específicas, determinadas e legítimas, permitindo um uso generalizado do reconhecimento facial e abrindo a possibilidade de se legitimar a vigilância em massa; (v) informação sobre o compartilhamento dos dados pessoais coletados com outros órgãos e empresas. 

Na sexta-feira, dia 12 de março, respondendo à pressão colocada pela sociedade civil, publicou-se no Diário Oficial do Estado de São Paulo do Estado de São Paulo o veto total ao PL

Uso de dados pessoais pelo poder público

Esta disputa política e jurídica evidencia a necessidade de ampla reflexão sobre o reconhecimento facial, especialmente quando se trata de espaços e recursos públicos. Se é necessário um sistema inovador para lidar com os complexos e antigos problemas sociais do país, deve-se considerar que esta inovação não pode ser predatória aos cidadãos.O poder público deve, pois, ativamente evitar que consequências negativas se materializem com o uso de tecnologias, protegendo a liberdade de expressão, a privacidade, a democracia e os direitos humanos. Dessa forma, é essencial envolver a sociedade civil, as empresas, os governos e a academia para forjar sistemas inovadores com responsabilidade social, assegurando a democracia digital e evitando, assim, agravar desigualdades já existentes no espaço urbano. 

As considerações feitas pelas entidades no caso do PL do reconhecimento facial são essenciais para traçar os parâmetros éticos antes da efetiva implementação da tecnologia pelo poder público. Neste sentido, o FGV Cepesp e o CEPI, no âmbito do projeto de pesquisa aplicada de mobilidade inteligente e proteção de dados pessoais, estão desenvolvendo regulações para o uso de informações identificadas e identificáveis de usuários do transporte público de São José dos Campos. Alinhados com as colocações feitas pelas entidades, temos como objetivo sugerir e implementar soluções jurídicas que possibilitem a inovação tecnológica para o aprimoramento de políticas públicas de transporte em conformidade com a legislação, preservando os direitos dos cidadãos, titulares dos dados e os limites éticos no uso de tecnologias. 

*Livia Pazianotto Torres é bacharel em direito pela USP. É pesquisadora no CEPI, da FGV, no “Projeto de Conformidade às Leis de Proteção de Dados Pessoais” e no CEPESP, no “Projeto Mobilidade do Futuro: um Modelo Disruptivo para São José dos Campos” da Fundação Getúlio Vargas.

Tainá Ometto é cientista social e bacharel em direito. Pesquisa temas relacionados à proteção de dados pessoais e privacidade.